segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Nota de abertura

Ser ateu é uma posição deveras incómoda. Ninguém gosta de ser um “não qualquer coisa”; bem pelo contrário, as pessoas gostam de se afirmar pela positiva e não lhes pode ser negado esse direito. Porque me haveria de afirmar como “aquimerista” num mundo em que, por hipótese, a maioria fosse “quimerista”, ou seja, que acreditasse na existencia de quimeras?

Imagine-se então que eu, num tal mundo imaginário, só teria direito a sustentar a minha crença de que não existem quimeras se conseguisse provar que elas não existem. Apesar de nunca ter visto nenhuma, nada impede que existam seres com duas cabeças, uma de leão e outra e cabra, como sustenta a maioria. Confesso que já tenho visto leões e cabras, cada qual com a sua cabeça, e o facto de nunca ter visto animais com duas cabeças não prova que não existam; mas, se tivesse que apostar, e é nisso que se baseia a minha crença, consideraria tratar-se de algo muito improvável.

Este exemplo pretende apenas ilustrar como é arbitrário e ridículo a imposição de ter que provar a não existência de quimeras para que possa sustentar a minha opinião sem receio de ofender a sensibilidade ou contrariar a opinião da maioria dos crentes "quimeristas".

Mas há outro aspecto que torna a situação mais grave e, tambem, mais ridícula. A questão da existência de quimeras lida com meras possibilidades. Uma possibilidade é "aquilo que nada impede de" e a comprovaçao de uma possibilidade decorre apenas da verificação da sua realidade - "contra factos não há argumentos", diz a sabedoria popular. Porém, a questão de Deus tem outro alcance: a sua existência ou é necessária ou, caso contrário, é absolutamente dispensável. A existência de algo é necessária quando dela depende a existência de outra coisa atestada factualmente como existente: se há galinha, houve ovo; se a pessoa existe, teve um pai e uma mãe biológicos; se há um quadro, houve um pintor, etc. Se não houver nada que postule necessariamente a sua existência, esse ser hipotético é espúrio e a hipótese da sua existência deve ser afastada, pura e simplesmente. Não há necessidade de provar a não existência de algo absolutamente dispensável. É o caso da hipótese divina: não só não é necessária para explicar a existência do Universo, da Vida e do Homem, como só confunde e baralha.

Gosto de ser tratado como uma pessoa normal, adulta e saudável e não considerado como um indivíduo que se priva de viver com quimeras ou com Deus, um aquimerista ou um ateu. Quero aceitar a vida com naturalidade e alegria precisamente como ela se me oferece, limitada e finita, sem receio de encarar a angústia da morte inevitável e o desaparecimento no nada impessoal, aquilo em que acredito. Deus e a sua eternidade, a alma e a sua imortalidade e todo o mundo sobrenatural não são, para mim, senão recusas e fugas cobardes ao mundo real em que nascemos, vivemos e morremos. Representam um enxovalho à dignidade humana, o desprezo e a humilhação renitentes do corpo e do seu bem-estar material, uma ordem social mantida à custa de proibições e retaliações, o terror moral através da culpabilização e da ameaça, a promessa de uma ilusão.

A crença nas quimeras é inofensiva. A crença em Deus não é. Inventada e alimentada continuamente por uma minoria visionária e alucinada de fanáticos, dela se amparam ainda hoje os poderosos como instrumento do seu controlo, domínio e quietação das gentes e das nações exploradas. A religião, as igrejas e o clero são as armas e o exército da cruzada pela alienação e intoxicação humana: pregam o ódio à vida e incitam à fuga para o sobrenatural. Estes necrófagos são como um vírus que parasita e se estende em todas as dimensões e variedades da Cultura humana. Pouco lhes importa que a humanidade caminhe para a catástrofe nuclear, ambiental, económica, social ou moral. O seu dedo está apontado. Para mim. Para ti. Para uma infinidade de indivíduos. Para te acusarem. Para te redimir ou punir. O importante para eles é que vivas no medo permanente.

Assim, para mim ser ateu não é uma convicção, é uma causa. Não se reivindica do cognitivo ou do racional mas do volitivo. Sou ateu porque quero, não porque me convenci ou por ter sido convencido. E é uma causa pela qual lutarei e que só terminará quando o nome de Deus for apagado da face da Terra.

Este blogue é a minha modesta contribuição para a causa do ateísmo moderno. Sinto que há uma multidão que se está a juntar e a congregar esforços para quebrar os grilhões da alienação e lutar contra a Quimera sem recear já os índexes e os autos de fé.

Esta visão do ateísmo não visa provar a não existência de Deus. Pelo contrário, aceita-a. E comprova que Deus não está morto. E não está morto porque não pode morrer: Deus é uma ideia perniciosa e malévola que deve ser combatida. Essa é a razão do ateísmo, a única válida.

A luta não é contra ninguém. Não é, em primeiro lugar, contra os crentes, seja qual for o grau de sinceridade das suas crenças. Também não é movida por qualquer animosidade contra os membros do clero que devem ser tratados com justiça de acordo com os seus méritos, tal como qualquer outro ser humano. Não é contra as instituições religiosas, salvo as que promovem o terrorismo e a intolerância sob qualquer forma.

Muitas das crenças existentes são indissociáveis das culturas e da identidade dos povos que as mantêm e devem ser protegidas e acarinhadas como património desses povos e de toda a humanidade. A luta é exclusivamente pelo expurgo do vírus sobrenaturalista. Sectores importantes do clero têm-se juntado a uma diversidade de lutas pela emancipação, contra a exploração, a ignorância, a perseguição, a discriminação, a fome e a tirania. Qualquer manifestação de anticlericalismo ou outra forma de perseguição torna o ateu igual àquilo que combate. Muitas instituições religiosas trabalham devotadamente, com denodo e, muitas vezes, em situações de elevada perigosidade nas áreas da assistência, da saúde, da educação e da protecção dos direitos dos mais desfavorecidos. O seu trabalho nestas áreas tem que ser reconhecido.

E ateologia porquê? A ateologia está para o ateu como a teologia para o crente. É um corpo de conhecimentos organizados com o objectivo de estabelecer os fundamentos de uma crença e, a partir daí, propor códigos de conduta e estilos de vida. Tal como a visão naturalista da ciência desobstrui as vendas impostas pelo sobrenaturalismo ao conhecimento da realidade, a ateologia pretende ser uma teologia invertida, que se baseia na pesquisa científica do mundo material e da cultura humana para explicar o aparecimento e a evolução das concepções sobrenaturais, analisar os seus erros e efeitos e predizer os seus desenvolvimentos futuros, bem como fazer a história das concepções ateístas, da sua perseguição e silenciamento. A esta inversão nos planos ontológico e gnoseológico deve corresponder também uma inversão dos valores que sustente uma ética naturalista e uma proposta de vida baseada na liberdade, na responsabilidade e na solidariedade e seja conducente a toda a felicidade e realização pessoal que ainda for possível na Terra.

A ateologia portuguesa não está feita, é um projecto de âmbito ilimitado que envolve qualquer temática que tenha por objectivo promover a Terra, a Vida e o Homem. É um projecto aberto a todas as pessoas de espírito aberto e de boa vontade.

7 comentários:

  1. Pior que a Amazónia, tribos desconhecidas e trilhos improváveis, caro irmão. É de louvar a lavagem e saponária feita à nossa educação judaico-cristã que nos leva a dizer ai meu deus quando há um imprevisto. Bem sabes como ladeio a retórica e vou mais coma "imagem"... Abraços da bettips

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  2. Gostei muito deste teu artigo. Muito interessante.
    Bom Ano!
    M

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  3. Mano, que grande nota! Que grande abertura! Há que desenvolver toda a sinfonia! Regressámos agora da praia (63ºF) para almoço e estivemos a ver o teu blog. Um grande ano para vocês.

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  4. Gostei muito de quando dizes "ética naturalista e uma proposta de vida baseada na liberdade, na responsabilidade e na solidariedade e seja conducente a toda a felicidade e realização pessoal que ainda for possível na Terra." Penso muitas vezes na Myriam e na educação que lhe devemos dar. Beijinhos.

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  5. O meu agradecimento a todos os leitores e comentadores que participaram no lançamento deste sítio. O seu encorajamento leva-me a prosseguir e a manter o elevado nível de seriedade e rigor que me propus. Este sítio estará aberto a todos os que nele quiserem colaborar na realização dos objectivos propostos. Bem hajam.

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  6. Aqui está um tema interessante, serei uma seguidora atenta e ateóloga.
    E tio, superbooh é a sobrinha Marta :)

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  7. Já percebi que não tenho aqui cabidela, pois os meus níveis de seriedade estão completamente em baixa. E é pena (perdoa-me o exagero) pois a falta dela bem poderiam contribuir para tornar este sítio, ainda maior referência ateísta. Por outro lado até me dá jeito: vou perseguir umas beatas, daquelas que batem por tudo e por nada com a mão no peito.

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